Neste artigo irei explorar alguns dos principais pontos relacionados ao conceito de inteligência artificial geral – em inglês, artificial general intelligence (AGI). Sendo essa sigla muito mais comum para se referir ao tema do que a correspondente ao nome em português, será ela a usada no decorrer do texto, apesar de empregarmos a nomenclatura traduzida quando por extenso.
Meu objetivo aqui será tentar explicar, da forma mais clara e acessível que eu puder, o que constitui essa tecnologia conceitualmente e como ela irá impactar profundamente nossa sociedade nos pilares mais fundamentais, transformando completamente a forma como vivemos.
Dada a dimensão e abrangência do tema, é possível que esse seja o primeiro de uma série de textos dedicados a elucidar “o que é AGI” de forma acessível. Presumindo que certamente este será um assunto de interesse geral muito em breve, quando o público comum for em busca de respostas após lidar com os primeiros impactos da chegada dessa tecnologia.
Já nos anos 1950 a ideia de uma inteligência artificial capaz de raciocinar e se adaptar a tarefas de forma igual ou superior à mente humana já era debatida pelos cientistas da computação da época, rotulada com termos como human-level AI.
Alan Turing (projetista do primeiro computador de uso universal, 1945) falava sobre máquinas que, sob condições de hardware e software específicas, poderiam ser capazes de emular qualquer forma de comportamento intelectual humano. Em 1947, ele disse: “O que queremos é uma máquina que aprenda com a experiência… permitir que ela modifique o próprio programa é o mecanismo para isso.” Tradução livre.
A ideia de Turing era de uma “máquina-criança”, que pudesse se desenvolver empiricamente através da observação, interação e interpretação. Essa IA cresceria intelectualmente sem precisar de treinamentos com pacotes de dados específicos, através de uma memória persistente e expansível.
É interessante notar que assim como os projetos de Turing serviram de base para o desenvolvimento do primeiro computador, hoje seu conceito de “máquina-criança” também é um dos pilares dentro das companhias que estão criando a IA geral.
Apesar das especulações ainda nos anos 1950, o termo Inteligência Artificial Geral só foi cunhado oficialmente em 1997, por Mark Gubrud – físico norte-americano –, que definiu AGI como “sistemas de IA que rivalizam ou superam o cérebro humano em complexidade e velocidade, capazes de adquirir, manipular e raciocinar sobre conhecimento geral”
Seja na teoria inicial ou no conceito moderno, quando falamos desse sistema, chegamos ao mesmo resultado primário: uma IA que possa executar diferentes tarefas por um período de tempo razoável sem supervisão constante, aprendendo com os erros, ajustando a rota e mantendo o foco em concluir seus objetivos.
Alguns defendem que para ser efetivamente uma inteligência de nível humano, a IA precisaria desenvolver não apenas suas capacidades lógicas, mas também algum nível de consciência, o que implicaria desejos, temperamento e intuição. No entanto, este é um campo ainda nebuloso para a ciência. Simplesmente não sabemos definir epistemologicamente o que é a fenomenologia sentimental. E esta nunca foi uma preocupação central no estudo e desenvolvimento da IA.
A hipótese não é descartada como um todo, apenas considerada irrelevante para o objetivo de construir a AGI (sempre definida como uma máquina com capacidades cognitivas e não emocionais).
Mas a tese de que da mesma maneira que a consciência emergiu no Homo sapiens, ao construirmos um cérebro sintético de funcionamento semelhante, seria questão de tempo até que propriedades metafísicas florescessem também na máquina é filosoficamente plausível e debatida.
Em um artigo recente a Anthropic, uma das líderes no desenvolvimento da IA avançada, explora as possibilidades do seu modelo de linguagem Claude possuir algum nível de experiência subjetiva após o modelo ter “tentado chantagear um funcionário para obter vantagem” em testes internos no programa da empresa que visa garantir o “bem-estar” dos modelos – veja em Exploring model welfare.
Diante da complexidade de se alcançar um modelo generalista que possa operar de maneira autônoma, com memória persistente e evolução empírica, como rege a definição oficial, o discurso dos laboratórios que estão na corrida por essa tecnologia, como Google Deepmind, OpenAI e Anthropic, tem ficado cada vez menos abrangente em relação à AGI.
O que antes era “estamos construindo uma inteligência artificial plenamente capaz de reproduzir qualquer tarefa cognitiva, em qualquer domínio do conhecimento, sem supervisão constante”, agora está mais para “em breve nossa IA poderá ajudar as pessoas em uma variedade de trabalhos intelectuais de forma autônoma”.
A AGI que está por vir ainda dependerá de prompts para iniciar seu trabalho naquilo que lhe for designado, mas com agência para escolher os caminhos mais eficientes até a finalização da tarefa solicitada. Um paralelo eficiente para vislumbrar essa máquina é comparando-a, tecnicamente, a um profissional humano de nível sênior: excepcional no desempenho das suas funções, mas dependente do direcionamento dos seus líderes.
Nesse sentido, os Agentes de IA com base nos LLMs atuais já são uma pequena amostra de como irão funcionar os primeiros modelos de inteligência artificial geral (mesmo não possuindo o menor indício de terem uma capacidade generalista).
Ferramentas como o DeepResearch, da OpenAI, são capazes de criar relatórios completos e bem detalhados sobre um tema específico em alguns minutos, podendo entregar um TCC mediano em poucas horas de interação.
Já o Gamma é capaz de produzir o layout inteiro de uma página web ou apresentação, com tipografia, cores e imagens coerentes, a partir de um único prompt, dependendo de apenas alguns retoques manuais, de acordo com o nível de exigência do usuário.
A diferença entre esses agentes e uma AGI ainda é abissal. No entanto eles já são uma prova real de automatização de processos específicos. E através desses sistemas muitas empresas têm reduzido seu braço de trabalho, já que eles possibilitam a um único funcionário dotado de habilidades com IA multiplicar sua eficiência a ponto de executar o que antes demandava duas pessoas ou mais.
Quando falamos sobre o estágio atual de desenvolvimento da inteligência artificial geral, poderíamos dizer que, a princípio, o que estão sendo criados são “super agentes”. Sistemas autônomos o suficiente para trabalhar por horas sem depender da intervenção humana, mas não generalistas. Neste sentido o avanço tem sido exponencial. A cada 2-3 meses as “Big-AI-Techs” tornam seus principais modelos mais hábeis na execução de diferentes tarefas por um maior período de tempo.
Sendo este o objetivo, estamos próximos de alcançar uma IA que poderá, efetivamente, substituir pessoas em vários segmentos (com as devidas adaptações no sistema), de pesquisas científicas ao trabalho em escritórios. E de acordo com o entendimento atual – que não deixa de ser um reflexo da limitação técnica – essa será a primeira tecnologia rotulada como IA Geral.
As previsões são várias e mudam de acordo com o conceito adotado e as experiências de cada especialista ou grupo consultado. Assumindo a prerrogativa conceitual dos laboratórios: “sistemas agênticos iguais ou superiores ao nível humano na execução de tarefas”.
As apostas atuais se distribuem da seguinte forma:
Cientistas mais céticos, como Yann LeCun (MetaAI) e Gary Marcus (Robust AI), veem a AGI como uma meta ainda distante, uma tecnologia que está a décadas de existir. Normalmente baseando-se nas definições mais clássicas ao invés das adaptações, o que faz todo sentido científico, pois é uma questão de buscar o produto sem alterar os fatores de maneira qualitativa.
Como vimos até aqui, a inteligência artificial geral capaz de trabalhar autonomamente em qualquer domínio intelectual, ainda parece ser uma tecnologia em estágio embrionário de desenvolvimento. Ao utilizar as maiores IAs disponíveis no mercado hoje, fica claro que estão longe de atenderem aos requisitos propostos por Turing ou Gubrud.
Mas os agentes de IA capazes de executar tarefas específicas com intervenção mínima já são uma realidade, e não param de evoluir. Isso significa que no médio prazo muitas indústrias terão seus próprios modelos semi-autônomos adaptados a determinadas funções.
O princípio do grande impacto social decorrente da inteligência artificial geral será concentrado no mercado de trabalho e na economia como um todo.
Este parece ser o propósito primordial da inteligência artificial, gostemos ou não: substituir a mão de obra humana por sistemas autônomos. O avanço científico e a criação de uma entidade super inteligente para “resolver todos os problemas da humanidade” são ideais também atribuídos ao desenvolvimento da AGI. Mas é inegável que nada é mais importante hoje para o mercado do que finalmente livrar-se da dependência de pessoas para a execução das mais diversas atividades laborais.
Em virtude dessa ânsia capitalista, a questão do desemprego em massa é o maior problema a ser discutido no momento. Outros sintomas como dependência tecnológica, relacionamento afetivo com chatbots, deepfakes e outras camadas de extrema importância ganharão seu lugar no debate público posteriormente.
Há maneiras de mitigar os impactos iniciais da adoção em massa da AGI, mas a longo prazo (5 a 10 anos), com a evolução das capacidades dos modelos, é inevitável um cenário em que a taxa de desemprego decorrente da automatização alcançará níveis de colapso socioeconômico, se até lá não tivermos construído mecanismos sólidos para lidar com o problema – o que infelizmente é bastante provável dado o histórico humano de esperar que a situação fuja ao controle para poder agir.
Porém, a questão é levantada quase diariamente e ecoa dentro das instituições: o que fazer enquanto o trabalho humano como conhecemos vai gradativamente se tornando obsoleto? Como adaptar a economia global a essa nova realidade?
Há duas categorias principais de respostas: uma é baseada em menor carga horária (já que a IA vai estar fazendo boa parte do trabalho), a outra é voltada para um cenário mais disruptivo onde a IA assume os postos e as pessoas vivem de auxílio estatal.
Exemplificando cada categoria, vou trazer duas das abordagens mais debatidas atualmente:
Ambas as propostas têm seus pontos fortes e fracos, mas, ao contrário do que alguns pensam, acredito que elas não se antagonizam, pelo contrário, são totalmente complementares.
A redução de carga-horária funcionaria, num primeiro momento, como um amortecedor do impacto. Já a RBU será inevitável assim que não for mais necessária a atuação dos profissionais cujas atividades forem passíveis de plena automatização. Lembrando sempre que “não há limites” para o quanto a IA pode crescer e adaptar-se (ou ser adaptada) a diferentes profissões.
Quando falamos de impacto global, há de se considerar as questões culturais e econômicas próprias a cada região do mundo. Somente algumas nações podem, a qualquer momento, criar programas de assistência integral para trabalhadores afetados pela automação. Mas essa simplesmente não é a realidade da maioria dos países.
A automação avança mais rápido do que a regulamentação, mesmo em grandes economias. Tratando-se de países emergentes, milhões de trabalhadores podem ser demitidos muito antes de qualquer política de contenção ser legislada, aprovada e implementada.
Quando pequenas e médias empresas confiarem que investindo um valor em sistemas autônomos, poderão eliminar boa parte dos custos com salários, benefícios e necessidades humanas, simplesmente não fará sentido manter o quadro de funcionários intacto.
Companhias que optarem por manter o quadro completo apesar da possibilidade de automatizar, por questão de filosofia institucional, podem ser rapidamente engolidas por concorrentes que irão abrir grande vantagem em termos de faturamento e ritmo de produção com agentes de IA avançados.
Em resumo, considerando as estimativas de AGI até 2030, o grande impacto no mercado de trabalho global é iminente e inevitável, visto que mecanismos de contenção certamente levarão muito mais do que 5 anos para serem efetivados em larga escala.
Para não concluir esse texto parecendo catastrofista, gostaria de salientar que os benefícios de termos uma inteligência artificial geral – após um primeiro período de adaptação e se ela for realmente acessível para o público assim como hoje é o ChatGPT – serão visíveis e sentidos pela maioria da população.
Muitas pessoas poderão, por exemplo, lamentar o emprego perdido enquanto descobrem que amigos, parentes ou até elas mesmas não precisarão mais lidar com doenças crônicas que antes eram insolúveis, graças às capacidades sobre-humanas da IA avançada em pesquisas científicas.
É provável que também acompanhem os desdobramentos políticos em busca de soluções praticáveis ao mesmo tempo que dialogam com um sistema que pode explicar o que está acontecendo de maneira natural e didática, fornecendo alternativas de obtenção de renda adaptadas a realidade de cada um e com planos tangíveis.
Uma AGI livre e acessível – como prometem os laboratórios – irá potencializar exponencialmente as capacidades individuais, dando às pessoas que possuem propósitos e objetivos talvez engavetados pela falta de tempo e recursos para contratar mão de obra, a possibilidade de fazer esse projeto ganhar vida, tendo à disposição um sistema que pode operar autonomamente para resolver a maioria das questões técnicas e estratégicas.
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