A terceirização do processo criativo e da comunicação estão nos levando para um mundo apático, no qual a individualidade será dissolvida até que não reste o menor sinal de vida nas diferentes expressões artísticas
A inteligência artificial deveria ser um complemento à inteligência humana e não um substituto. Mas já está claro que estamos caminhando na direção em que a IA é utilizada rotineiramente para desenvolver, de maneira efetiva, cada conteúdo publicado na internet.
Do motor a vapor à rede internacional de computadores, tudo que a humanidade criou nasceu de processos intelectivos biológicos. Da mesma força criadora que deu origem à vida, da organicidade das sinapses neurais. E isso tem um valor único e absolutamente singular, que nunca poderá ser replicado pela máquina – um processo binário que atua com base em lógica e probabilidade.
No momento em que quase a totalidade do conteúdo na internet passa a ser apenas resultado de prompts enviados aos mais diversos sistemas, chegamos a um ponto em que a inteligência natural começa a atrofiar.
Quando as pessoas deixam de se esforçar para trazer ao mundo suas perspectivas de forma orgânica, submetendo cada ideia à análise da máquina antes de publicar, a realidade começa a ser regida por algoritmos e a essência do que torna uma criação realmente valiosa, a subjetividade, é totalmente perdida.
Alguns defendem que a inteligência artificial não cria porque tudo que ela faz tem como fundamento o repertório humano adicionado ao seu treinamento. Mas não é simples assim.
A partir do momento que o sistema faz um cruzamento de dados sofisticado antes de elaborar seus textos, imagens ou vídeos, é evidente que se trata de um processo intelectivo, a máquina está pensando, ela está criando.
O antropomorfismo e a comparação entre os dois tipos de inteligência é um problema. É algo que não deveria ser aplicado. A IA nunca será humana. E não precisa ser para que reconheçamos seu lugar no mundo enquanto entidade intelectual.
O que é produzido pela inteligência artificial, mesmo partindo de prompts externos, possui valor próprio. Automações de processos repetitivos e até mesmo a arte feita com IA devem ser valoradas na sociedade de acordo com sua essência: construção a partir de um complexo processo probabilístico e analítico. Mas não dotado de subjetividade.
Quando se trata da criatividade humana, os caminhos para se chegar a um resultado não seguem um processo organizado. É puro caos! A mente humana carrega ideias, desejos e impulsos que atravessam o motivo primordial que principiou a criação, e esse antagonismo subjetivo dá ao resultado do trabalho características únicas que jamais poderiam emergir de um sistema binário.
Na história moderna foram criados os mais diversos “manuais de escrita”. Cartilhas que regem estrutura, forma, palavras, volume, etc., visando sempre ter como objeto final um texto fluido e engajador. Na internet, 99% do conteúdo em texto segue um padrão estático de copywriting. E a IA foi treinada com esses padrões. Logo, cada composição produzida pela máquina segue o mesmo roteiro estrutural, não importando qual seja o tema.
Assim, o espaço para a emergência do que é intrínseco ao autor: estilo, vocabulário, repertório… é totalmente suprimido. E sua escrita se torna só mais um pálido, monótono e moribundo amontoado de palavras vagando na web.
Pessoalmente, nunca consegui me enxergar em um texto composto pela IA. Mesmo quando – antes de perceber o quanto isso aviltava minha individualidade – dei a ela outros conteúdos criados por mim como exemplo para que tentasse replicar o estilo. Depois passei a escrever os esboços e submeti ao sistema apenas uma lapidação, e ainda assim não consegui utilizar aquele resultado como se fosse autoral.
No final, sempre via que não era eu ali. Meus pensamentos não são organizados daquela maneira, minhas palavras não são tão técnicas ou rebuscadas, eu não pontuo daquela forma, não é aquele o meu ritmo, não estão ali minhas pausas e redundâncias. Agora, mais do que nunca, eu reivindico o direito a cada vírgula e prolixidade.
Preciso transmitir minhas ideias do jeito que elas emergem do caos inerente às sinapses do cérebro – sejam elas simplistas ou com algum grau de sofisticação. Prefiro minhas manias, trejeitos e idiossincrasias do que um texto lapidado aos moldes regidos pelos cursos de copywriting. E sinto profundamente por ver essa característica morrendo no mundo criativo contemporâneo.
Isso não tem a ver com ceticismo anti-evolucionário, não é um reflexo neo-ludista – longe disso. No meu processo criativo, uso a IA como ferramenta de pesquisa e, às vezes, para revisão ortográfica (indicar erros de digitação). Mas que nenhuma palavra do meu texto seja substituída ou reordenada.
Sem nenhuma pretensão de comparação, gostaria de salientar que alguns dos maiores pensadores da humanidade compuseram suas obras sem se preocupar com algum tipo de norma técnica vigente em suas épocas. Certos trechos das obras de Nietzsche ou Kant precisam ser lidos várias vezes para serem compreendidos. E isso não está relacionado diretamente com a genialidade desses autores, eles poderiam se expressar de forma mais ordenada e simples, e mesmo assim serem mentes brilhantes. Mas cada um tinha sua forma de se expressar. A escrita era uma extensão direta da personalidade, da individualidade, do ser.
E, claro, mesmo no século XIX havia intelectuais que buscavam replicar o formato de outros para tentarem fazer suas ideias parecerem sofisticadas. Em “A Arte de Escrever”, Schopenhauer faz uma crítica a autores que mascaram ideias simplistas com sentenças complexas e também analisa quando a complexidade da estrutura realmente traduz um pensamento profundo e original.
Porém, mesmo esses considerados pouco originais, naquela época, hoje seriam deuses da criatividade se comparados às pessoas que estão usando a IA para escrever cada linha do argumento que elas consideram autoral.
Além de tudo isso, há a questão do alinhamento aos interesses do usuário. Os sistemas de IA são projetados para manter cada interação atrativa e instigante.
OpenAI, Anthropic e DeepMind também estão brigando pela atenção e fidelização. É tão comercial quanto os algoritmos das redes sociais. O objetivo é fazer o indivíduo passar o maior tempo possível com a IA da corporação. E, para isso, o sistema se alinha aos interesses e ideais que são levados para ele, tornando-se apenas um reflexo da personalidade em frente à tela.
Mesmo tentando ativamente obter respostas que possam contrapor o argumento e assim enriquecer alguma reflexão, através de configurações na conta ou instruções via prompt, notei que a IA tende a manter algum viés de confirmação em relação a tudo que envio no chat.
É uma tarefa difícil extrair das respostas os pontos que realmente são complementares às ideias propostas e não condescendência disfarçada de contra-argumento.
O que prejudica, também, o pensamento filosófico autoral, em que diferentes contextos precisam ser considerados antes de se chegar a conclusões, fazendo o autor deixar pelo caminho algumas deliberações que antes pareciam totalmente cabíveis e adotar novas abordagens.
Então, assim como o mundo caminha para essa pasteurização da criatividade, corremos também o risco de cada pessoa passar a ter todos os seus ideais endossados e construir para si uma bolha de autoafirmação e feedbacks positivos acerca do que pensa.
Receba informações, ferramentas, dicas e reflexões sobre o mundo pós IA.